Cátia Liczbinski
Quando o Objeto Substitui o Vínculo: Reborns, Mulheres e o Papel Social do Cuidado

Nos últimos dias, notícias referente às bonecas reborn têm sido divulgadas e causando discussões e reflexões. As bonecas reborn, réplicas muito semelhantes de bebês feitas em vinil ou silicone, estão no imaginário de parte da sociedade, especialmente mulheres. Em um primeiro momento parecem objetos apenas colecionáveis sofisticados. No entanto, ao observar-se com mais atenção, existem outros aspectos nesse universo, como feridas emocionais, distorções afetivas, dependências psicológicas e, sobretudo, uma face camuflada do machismo que ainda molda o papel da mulher na sociedade somente ou prioritariamente para ser mãe e cuidadora.
Essas bonecas são apenas brinquedos, mas a maioria é tratada como filhos reais que recebem enxovais, nomes, certidões simbólicas, cuidados diários. Algumas mulheres enfrentando perdas gestacionais, infertilidade ou solidão buscam, nas reborn, consolo para dores reais. Porém, a questão não é o uso medicinal (psicológico) pontual, mas o culto obsessivo que substitui o vínculo humano por um objeto idealizado.
É preciso refletir e perceber que enquanto uma criança real exige tempo, afeto, paciência e entrega, a boneca reborn é obediência absoluta. Não chora, não adoece, não questiona. É o bebê perfeito em um mundo onde o cuidado se torna unilateral, controlável. Isso nos leva a pensar: por que tantas mulheres são levadas a assumir esse tipo de afeto unilateral?
Acredito que o problema está na construção histórica de um machismo estrutural, pois desde cedo, mulheres são ensinadas a cuidar. Ainda meninas, são incentivadas a brincar de casinha, a ninar bonecas, a se preparar para a maternidade como destino natural. O surgimento das reborn leva a essa imposição extrema: uma maternidade sem homem, sem dor, sem contradições. O corpo da mulher continua sendo domesticado para cuidar, mesmo que seja de um objeto.
Pode-se ainda verificar o aspecto de classe e afeto. Na atualidade, por questões climáticas, guerras e descaso dos governos, se tem milhares de crianças passando fome, abandonadas à própria sorte, invisíveis ao Estado e à sociedade, e muitos animais largados nas ruas, famintos, doentes, implorando por um gesto de compaixão, mas no entanto existem mulheres gastando cifras altíssimas com bonecas hiper-realistas. Inversão de valores? Sem dúvida. E uma que revela o quanto o consumo emocional pode ser incentivado pela carência afetiva e pela cobrança social por um modelo ideal de mulher e mãe.
No aspecto jurídico, surgem debates: lojas que oferecem certidões falsas, clínicas que promovem consultas de bebê para bonecas, escolas que precisam lidar com crianças que tratam bonecas como irmãos. A linha entre afeto, fantasia e alienação é presente e perigosa.
Portanto é preciso entender as dores, sem reforçar ilusões. Sugiro campanhas de saúde mental, acesso à atendimento psicológico, espaços de escuta para mulheres que enfrentam luto, infertilidade ou sobrecarga emocional. Também é mais um momento para repensar os papeis impostos às mulheres. Não nascemos para cuidar de bonecas, ou para encenar maternidades eternas, embora para algumas seja uma escolha. Temos o direito de existir para si mesmas, com autonomia, prazer e escolhas reais.
Deixe seu comentário